O transplante de
tecidos, órgãos e partes do corpo humano é um procedimento terapêutico
destinado a pacientes em situação de risco. Não se desconhece, por isso, a
importância da doação desses elementos vitais. Segundo pesquisas mais ou menos
recentes, a maioria da população é favorável à doação de órgãos com tais
propósitos, entretanto, muitos têm receio de doar por uma série de razões,
dentre elas: em caso de doação de órgãos, após a morte, pode o Espírito doador
sentir incômodo ou dor, no momento da retirada desses órgãos?
Não existe o risco de erro médico, que poderia
determinar a remoção dos órgãos antes da morte física?
Ou mesmo a provocação da morte, com fins ilícitos?
De fato, doar órgãos é um gesto de amor e caridade
no seu mais profundo sentido, desde que seja consciente, espontâneo. Ninguém
deve sentir-se constrangido a doar seus órgãos, se a ideia não lhe agrada, se
não está seguro de tal decisão. Por isso, foi oportuna a Lei n. 10.211, de
23/3/2001, que alterou dispositivos da Lei n. 9.434/97, a qual dispensava a
autorização da família, nos casos de doador-cadáver, uma vez que se tornava
“doador presumido” ou “compulsório” quem deixasse de registrar expressamente,
nos documentos pessoais, a sua condição de não doador.
O Espiritismo, tendo anunciado a lei do progresso,
obviamente é a favor de todo avanço, seja de que área for, pugnando,
entretanto, pela observação da ética. Logo, jamais poderia ser contra a doação
de órgãos:
As descobertas que a Ciência realiza, longe de o
rebaixarem, glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens edificaram
sobre as falsas ideias que formaram de Deus.
Se não houver disposição de última vontade da
pessoa viva, a esse respeito, tal direito transmite-se, automaticamente, aos
parentes do desencarnado. Todavia, se a família desconhecer a vontade do
extinto, torna-se muito mais difícil tomar uma decisão desse porte. Por tudo isso,
é de suma importância que comuniquemos aos familiares, desde já, nosso desejo
quanto ao destino a ser dado aos órgãos, para que não haja, no futuro,
perplexidade nem dúvidas quanto à nossa real pretensão.
Há muito se estuda a questão ética sobre se a criatura
humana é ou não proprietária de seu organismo. No sentido ético-religioso, o
homem não é dono absoluto de seu corpo, mas usufrutuário dele, como o é de
todos os bens materiais existentes, motivo pelo qual pode, de acordo com o seu
livre-arbítrio e sua consciência, colocá-lo a serviço do próximo e da Medicina,
se as condições o permitirem.
O corpo físico é o primeiro empréstimo que Deus
concede ao Espírito para o seu aprimoramento moral e intelectual. Por que não
permitir que esse bem precioso, que não mais será utilizado por alguém que
acaba de desencarnar, favoreça, por meio da doação de seus órgãos, a
prorrogação da vida orgânica de outro Espírito encarnado, para que esse possa,
em permanecendo mais tempo na esfera terrestre, aproveitar as oportunidades de
crescimento e de progresso, numa espécie de moratória espiritual?
A tecnologia dos transplantes vem aperfeiçoando
cada vez mais esse processo terapêutico, vencendo o tradicional inimigo (a
rejeição dos órgãos) e inclusive aprimorando o diagnóstico da morte física, sem
prejuízo nenhum para o cosmo celular, para o perispírito ou para o Espírito
desencarnante, que sempre recebe a proteção do Alto, por sua intenção
benemérita.
Se houver algum erro médico, malversação ou má
utilização dos órgãos doados, bem assim rebeldia do Espírito doador
involuntário, tais acontecimentos estarão situados na órbita da lei de causa e
efeito.
O diagnóstico da morte encefálica, que não se confunde
com o estado comatoso, é o critério científico válido, atualmente, para
detectar a cessação da vida que, inclusive, é reconhecido pela benfeitora
Joanna de Ângelis.
A morte é um processo complexo, lento e gradual. A
vida não pode ser entendida pela simples presença de sinais vitais isolados em
órgãos e tecidos, mas sim de elementos vitais estruturados que, em conjunto,
formam a concepção da pessoa. Uma vez morto o encéfalo, não há qualquer
possibilidade de reanimar o indivíduo; os demais órgãos, como pulmão e coração,
continuam a funcionar por certo tempo, para logo mais, assim como todos os
demais órgãos, interromper-se o seu funcionamento.
Por isso, é fundamental que os órgãos sejam
aproveitados para doação antes que cessem os batimentos cardíacos e a
respiração, que podem ser mantidos temporariamente por meios artificiais, logo
após a morte encefálica, aumentando o fator tempo para a preservação das
células dos órgãos a serem transplantados, o que também facilita a tomada de
providências, inclusive médicas, jurídicas e logísticas indispensáveis aos
preparativos e ao êxito da cirurgia de remoção e transplante.
A possibilidade de erro de diagnóstico é remota,
pois, no caso dos transplantes, a legislação exige a realização de vários
exames clínicos especializados e diversos complementares, e inclusive
repetitivos, sendo possível até o acompanhamento do médico da família, para
checar se estão sendo tomados os procedimentos corretos.
O estudo do perispírito facilita a compreensão do
fenômeno morte, sob o ponto de vista espiritual e mesmo sob o ponto de vista
biológico.
A desencarnação assemelha-se ao processo invertido
da encarnação, em que as moléculas do perispírito vão se desprendendo uma a uma
dos componentes celulares.
A ligação do Espírito com a matéria pode
persistir, ainda que não exista vitalidade. Entretanto, na ausência de vida
orgânica, o Espírito perde o veículo de transmissão e recepção de sensações e
percepções, que persistem apenas na forma de lembranças na memória. Após a
morte, mormente nos seres humanos de evolução mediana, o Espírito não tem
consciência de si mesmo imediatamente depois de deixar o corpo, uma vez que
passa algum tempo em estado de torpor, de perturbação, que “nada tem de penosa
para o homem de bem”, que se conserva calmo, semelhante em tudo a quem
acompanha as fases de um tranquilo despertar. Os sofrimentos de que
padecem os Espíritos, conforme eles mesmos revelam, são as angústias morais,
que os “torturam mais dolorosamente do que os sofrimentos físicos”.
Se alguém tiver que sofrer por algum motivo, após
a morte física, quer haja cremação ou retirada de órgãos para transplante, a
dor será moral e não física e acontecerá independentemente de ser ou não
cremado, de ser ou não doador, visto que ninguém sofre desnecessariamente
perante as leis divinas. Pelo contrário, a intenção caridosa do doador de
órgãos atrairá a atenção dos Espíritos bondosos, que lhe darão ampla
assistência, conforme atestam diversas mensagens recebidas do plano espiritual,
inclusive no caso de aproveitamento de órgãos de suicidas e em outros casos. É
lícito concluir, portanto, que o desligamento dos aparelhos, após o transplante
ou se este vier a ser frustrado por algum motivo excepcional, não implica a
prática da eutanásia, uma vez que já havia ocorrido a morte encefálica
independentemente do conceito espírita da desencarnação, cujo momento é
diferenciado para cada Espírito, dependendo do estágio de evolução.
Não há nenhuma contradição dessa afirmativa com o
ensino dos Espíritos superiores, pois eles mesmos esclareceram que a alma
independe do corpo,11 tanto que esse pode subsistir, ainda que temporariamente,
sem aquela. Entretanto, desde que cessa a vida do corpo, a alma o abandona, ou
seja, “a vida orgânica pode animar um corpo sem alma, mas a alma não
pode habitar um corpo privado de vida orgânica”,12 caso em que “a separação
definitiva da alma e do corpo pode ocorrer antes da cessação completa da vida
orgânica”.
A vida é um dos bens mais preciosos que existem,
mas todos, sem exceção, estamos fadados à morte física. Não há outro meio de
aprender a conviver com ela, senão compreendendo a finalidade da própria vida e
pautando o viver de acordo com as leis divinas.
No momento de uma decisão importante como essa,
coloquemo-nos no lugar dos potenciais receptores de órgãos. Pensemos na mãe
aflita que vê seu filho perecer por falta de doador compatível. Meditemos
naqueles enfermos que, angustiados e sofridos, submetem-se, por exemplo, às
máquinas de hemodiálise, à espera de um órgão. Não nos esqueçamos de que o não doador, hoje, pode
ser um receptor, amanhã.